quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Como nasce uma história

Quando cheguei ao edifício, tomei o elevador que serve do primeiro ao décimo
quarto andar. Era pelo menos o que dizia a tabuleta no alto da porta.
— Sétimo — pedi.
Eu estava sendo aguardado no auditório, onde faria uma palestra. Eram as secretárias
daquela companhia que celebravam o Dia da Secretária e que, desvanecedoramente para mim,
haviam-me incluído entre as celebrações.
A porta se fechou e começamos a subir. Minha atenção se fixou num aviso que dizia:
É expressamente proibido os funcionários, no ato da subida, utilizarem os elevadores
para descerem.

Desde o meu tempo de ginásio sei que se trata de problema complicado, este do infinito
pessoal. Prevaleciam então duas regras mestras que deveriam ser rigorosamente obedecidas,
quando se tratava do uso deste traiçoeiro tempo de verbo. O diabo é que as duas não se
complementavam: ao contrário, em certos casos francamente se contradiziam. Uma afirmava
que o sujeito, sendo o mesmo, impedia que o verbo se flexionasse. Da outra infelizmente
já não me lembrava. Bastava a primeira para me assegurar de que, no caso, havia um
clamoroso erro de concordância.
Mas não foi o emprego pouco castiço do infinito pessoal que me intrigou no tal aviso:
foi estar ele concebido de maneira chocante aos delicados ouvidos de um escritor que se
preza.
Ah, aquela cozinheira a que se refere García Márquez, que tinha redação própria!
Quantas vezes clamei, como ele, por alguém que me pudesse valer nos momentos de aperto,
qual seja o de redigir um telegrama de felicitações. Ou um simples aviso como este:
É expressamente proibido os funcionários...
Eu já começaria por tropeçar na regência, teria de consultar o dicionário de verbos e
regimes: não seria aos funcionários? E nem chegaria a contestar a validade de uma
proibição cujo aviso se localizava dentro do elevador e não do lado de fora: só seria
lido pelos funcionários que já houvessem entrado e portanto incorrido na proibição de
pretender descer quando o elevador estivesse subindo. Contestaria antes a maneira ambígua
pela qual isto era expresso:
. . . no ato da subida, utilizarem os elevadores para descerem.
Qualquer um, não sendo irremediavelmente burro, entenderia o que se pretende dizer neste
aviso. Pois um tijolo de burrice me baixou na compreensão, fazendo com que eu ficasse
revirando a frase na cabeça: descerem, no ato da subida? Que quer dizer isto? E buscava
uma forma simples e correta de formular a proibição:
É proibido subir para depois descer.
É proibido subir no elevador com intenção de descer.
É proibido ficar no elevador com intenção de descer, quando ele estiver subindo.

Descer quando estiver subindo! Que coisa difícil, meu Deus. Quem quiser que experimente,
para ver só. Tem de ser bem simples:
Se quiser descer, não torne o elevador que esteja subindo.
Mais simples ainda:
Se quiser descer, só tome o elevador que estiver descendo.
De tanta simplicidade, atingi a síntese perfeita do que Nelson Rodrigues chamava de
óbvio ululante, ou seja, a enunciação de algo que não quer dizer absolutamente nada:
Se quiser descer, não suba.
Tinha de me reconhecer derrotado, o que era vergonhoso para um escritor.
Foi quando me dei conta de que o elevador havia passado do sétimo andar, a que me
destinava, já estávamos pelas alturas do décimo terceiro.
— Pedi o sétimo, o senhor não parou! — reclamei.
O ascensorista protestou:
— Fiquei parado um tempão, o senhor não desceu.
Os outros passageiros riram:
— Ele parou sim. Você estava aí distraído.
— Falei três vezes, sétimo! sétimo! sétimo!, e o senhor nem se mexeu —
reafirmou o ascensorista.
— Estava lendo isto aqui — respondi idiotamente, apontando o aviso.
Ele abriu a porta do décimo quarto, os demais passageiros saíram.
— Convém o senhor sair também e descer noutro elevador. A não ser que queira ir
até o último andar e na volta descer parando até o sétimo.
— Não é proibido descer no que está subindo?
Ele riu:
— Então desce num que está descendo.
— Este vai subir mais? — protestei: — Lá embaixo está escrito que este
elevador vem só até o décimo quarto.
— Para subir. Para descer, sobe até o último.
— Para descer sobe?
Eu me sentia um completo mentecapto. Saltei ali mesmo, como ele sugeria. Seguindo seu
conselho, pressionei o botão, passando a aguardar um elevador que estivesse descendo.
Que tardou, e muito. Quando finalmente chegou, só reparei que era o mesmo pela cara do
ascensorista, recebendo-me a rir:
— O senhor ainda está por aqui?
E fomos descendo, com parada em andar por andar. Cheguei ao auditório com 15 minutos de
atraso. Ao fim da palestra, as moças me fizeram perguntas, e uma delas quis saber como
nascem as minhas histórias. Comecei a contar:
— Quando cheguei ao edifício, tomei o elevador que serve do primeiro ao décimo
quarto andar. Era pelo menos o que dizia a tabuleta no alto da porta.


                                                                                                          Fernando Sabino




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