Honrado Senhor Diretor da Companhia Telefônica:
 
Quem vos escreve é um desses desagradáveis sujeitos chamados  assinantes; e do tipo mais baixo: dos que atingiram essa qualidade  depois de uma longa espera na fila.
 
Não venho, senhor, reclamar nenhum direito. Li o vosso Regulamento e  sei que não tenho direito a coisa alguma, a não ser a pagar a conta.  Esse Regulamento, impresso no página 1 de vossa interessante Lista (que é  o meu livro de cabeceira), é mesmo uma leitura que recomendo a todas as  almas cristãs que tenham, entretanto, alguma propensão para o orgulho  ou soberba. Ele nos ensina a ser humildes; ele nos mostra o quanto nós,  assinantes, somos desprezíveis e fracos.
 
Aconteceu, por exemplo, senhor, que outro dia um velho amigo deu-me o  prazer de me fazer uma visita. Tomamos uma modesta cerveja e falamos de  coisas antigas — mulheres que brilharam outrora, madrugadas dantanho,  flores doutras primaveras. Ia a conversa quente e cordial, ainda que  algo melancólica, tal soem ser as parolas vadias de cupinchas velhos —  quando o telefone tocou. Atendi. Era alguém que queria falar ao meu  amigo. Um assinante mais leviano teria chamado o amigo para falar. Sou,  entretanto, um severo respeitador do Regulamento; em vista do que  comuniquei ao meu amigo que alguém lhe queria falar, o que infelizmente  eu não podia permitir; estava, entretanto, disposto a tomar e transmitir  qualquer recado. Irritou-se o amigo, mas fiquei inflexível,  mostrando-lhe o artigo 2 do Regulamento, segundo o qual o aparelho  instalado em minha casa só pode ser usado “pelo assinante, pessoas de  sua família, seus representantes ou empregados”.
 
Devo dizer que perdi o amigo, mas salvei o repeito ao Regulamento;  dura lex sed lex; eu sou assim. Sei também (artigo 4) que se minha casa  pegar fogo terei de vos pagar o valor do aparelho — mesmo que esse  incêndio (artigo 9) tenha sido motivado por algum circuito organizado  pelo empregado da Companhia com o material da Companhia. Sei finalmente  (artigo 11) que se, exausto de telefonar do botequim da esquina a essa  distinta Companhia para dizer que meu aparelho não funciona, eu vos  chamar e vos disser, com lealdade e com as únicas expressões adequadas, o  meu pensamento, ficarei eternamente sem telefone, pois “o uso de  linguagem obscena constituirá motivo suficiente para a Companhia  desligar e retirar o aparelho”.
 
Enfim, senhor, eu sei tudo; que não tenho direito a nada, que não  valho nada, não sou nada. Há dois dias meu telefone não fala, nem ouve,  nem toca, nem tuge, nem muge. Isso me trouxe, é certo, um certo sossego  ao lar. Porém amo, senhor, a voz humana; sou uma dessas criaturas  tristes e sonhadoras que passa a vida esperando que de repente a Rita  Hayworth me telefone para dizer que o Ali Khan morreu e ela está ansiosa  para gastar com o velho Braga o dinheiro da sua herança, pois me acha  muito simpático e insinuante, e confessa que em Paris muitas vezes se  escondeu em uma loja defronte do meu hotel só para me ver entrar ou  sair.
 
Confesso que não acho tal coisa provável: o Ali Khan ainda é moço, e  Rita não tem o meu número. Mas é sempre doloroso pensar que se tal coisa  acontecesse eu jamais saberia — porque meu aparelho não funciona.  Pensai nisso, senhor: pensai em todo o potencial tremendo de  perspectivas azuis que morre diante de um telefone que dá sempre sinal  de ocupado — cuém, cuém, cuém — quando na verdade está quedo e mudo na  minha modesta sala de jantar. Falar nisso, vou comer; são horas. Vou  comer contemplando tristemente o aparelho silencioso, essa esfinge de  matéria plástica; é na verdade algo que supera o rádio e a televisão,  pois transmite não sons nem imagens, mas sonhos errantes no ar.
 
Mas batem à porta. Levanto o escuro garfo do magro bife e abro. Céus,  é um empregado da Companhia! Estremeço de emoção. Mas ele me estende um  papel: é apenas o cobrador. Volto ao bife, curvo a cabeça, mastigo  devagar, como se estivesse mastigando os meus pensamentos, a longa  tristeza da minha humilde vida, as decepções e remorsos. O telefone  continuará mudo; não importa: ao menos é certo, senhor, que não vos  esquecestes de mim.
                                                                                           Rubem Braga

Nenhum comentário:
Postar um comentário