A noção de férias está ligada a figuras de viagem, esporte, aplicações intensivas do corpo; quase nada a descanso.
As
pessoas executam durante esse intervalo aquilo que não puderam fazer ao
longo do ano; fazem "mais" alguma coisa, de sorte que não há férias, no
sentido religioso e romano de suspensão de atividades. Matutando nisso,
resolvi tirar férias e gozá-las como devem ser gozadas: sem esforço
para torná-las amenas. A idéia de viagem foi expulsa do programa: é das
iniciativas mais comprometedoras e tresloucadas que poderia tomar o
trabalhador vacante. As viagens ou não existem, como é próprio da era do
jato, em que somos transportados em velocidade superior à do nosso
poder de percepção e de ruminação de impressões, ou existem demais como
burocracia de passaporte, filas, falta de vaga em hotel, atrasos, moeda
aviltada, alfândega, pneu estourado no ermo, que mais? Quanto à prática
de esportes, sempre julguei de boa política deixá-la entregue a
personalidades como Éder Jofre, Maria Ester Bueno ou Pelé, que dão o
máximo. A performance desses ases satisfaz plenamente, e não seria eu
num mês de férias que iria igualá-los ou sequer realçá-los pelo
contraste. Bem sei que o esporte vale por si, não pelos campeonatos; mas
também, como passatempo, carece de sentido. Pescar, caçar pequenos
bichos da mata? Nunca. Se esporte e morte acabam pelo mesmo som, para
mim nunca rimaram. Havia também os trabalhos, os famosos trabalhos que a
gente deixa para quando repousar dos trabalhos comuns. Organizar
originais de um livro. Escrever uma página de sustância (está pronta na
cabeça, falta só botar o papel na máquina!). Pesquisar em arquivos.
Arrumar papéis. Mudar os móveis de lugar. E os deveres adiados, tipo
"visitar o primo reumático de Del Castilho". A idéia de conhecer o Rio,
conhecer mesmo, que nos namora há 20 anos: tomar bondes esdrúxulos,
subir morros, descobrir lagoas de madrugada. Por último, o sonho
colorido dos gulosos, sacrificados durante o ano: comer desbragadamente
pratos extraordinários, sem noção de tempo, saúde, dinheiro. Tudo aboli e
fiz a experiência das férias propriamente ditas, que, como eliminação
das atividades ordinárias e exteriores, pode parecer estado
contemplativo ou exercício de ioga. Não é nada disso. Exatamente porque
abrem mão de tudo, as boas férias não devem tender à concentração
espiritual nem à contenção da vontade. São antes um deixar-se estar, sem
petrificação. Levantar se mais tarde? Se não fizer calor; um direito
nem sempre é um prazer. Ir ao Arpoador? Se ele nos chama realmente, não
porque a manhã e a água estão livres. O mesmo quanto a diversões, muitas
vezes menos divertidas do que a noção que temos delas.
Divertir-se
é desviar-se, e não convém que nos desviemos das férias, enchendo o
tempo com programas de férias. Deixemos que ele passe, sutil; não o
ajudemos a passar. Há uma doçura imprevista em sentir-se flutuar na
correnteza das horas, em sentir-se folha, reflexo, coisa levada; coisa
que se sabe tal, coisa sabida mas preguiçosa. Se me pedirem para contar o
que fiz afinal nestas férias, direi lealmente: ignoro. Aos convites
disse não, alegando estar em férias, alegação tão forte como a de estar
ocupadíssimo. O pensamento errou entre mil avenidas, não se deteve em
nenhuma; cada dia amadureceu e caiu como um fruto. Nada aconteceu? O não
acontecimento é a essência das férias. E agora, é trabalhar duro onze
meses para merecer as inofensivas e deliciosas férias do não.
Carlos Drummond de Andrade
Um comentário:
Muito bom , assim neh combina com alguém que conheço :/
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