Contrário à maioria das pessoas, Antônio
Cerqueira da Silva, o Tonho, passara a vida inteira planejando sua
morte: uma morte gloriosa, esplendorosa, digna de destaque nos anais dos
feitos heróicos. Sua morte se tornara uma obsessão. Enquanto todos
planejavam qual carro comprar, qual casa financiar, qual cônjuge
escolher, Tonho meditava: seria melhor ser vítima dum 38 ou de uma
submetralhadora? Atropelado por uma moto ou por um caminhão? Morto por
um ladrão ou por um terrorista? Os critérios levados em consideração
nunca se condicionavam ao fato da morte ser dolorosa, ou não. O que
realmente importava é que tinha de ser uma morte honrosa, resultado de
algum ato de bravura, uma manifestação de caráter heróico. Cair de uma
árvore e quebrar o pescoço ao tentar salvar o gato da viúva do 52 não
seria tão grandioso quanto salvar crianças de uma creche dominada por um
sequestrador, e ser baleado no último instante pelo facínora.
Ele tinha sua opinião:
- A gente vive, em média, 60 ou 70
anos. Mas a morte dura para sempre. Por que vou fazer planos para uma
vida tão curta, se posso fazer planos para a morte eterna?
Os parentes ficaram preocupados, temendo
que ele cometesse alguma loucura. Não adiantavam argumentos, não lhe
influenciavam conselhos. Tonho queria uma morte grandiosa, televisionada
e eternamente memorizada. Queria que ditados fossem reformulados: “Melhor morrer como um Tonho do que viver como um veado”. Uma placa em sua homenagem. Marchas comemorativas. Feriado municipal.
No dia em que entraram em seu quarto e
descobriram planos para sua “morte gloriosa” cuidadosamente registrados,
os parentes decidiram pela internação. Os enfermeiros, a princípio,
precisaram arrastá-lo para fora do apartamento. Apenas “a princípio”,
porque assim que percebeu que resistindo, poderia cair, bater com a
cabeça e morrer – uma morte indigna, pobre e sem graça – Tonho acabou
colaborando com os enfermeiros. Até mesmo acautelou-os, enquanto saiam
da portaria para a ambulância:
- Cuidado com o degrau!
Uma semana após o internamento de Tonho,
houve um terrível incêndio no hospício. Em poucos minutos, o prédio todo
estava em chamas. Bombeiros, curiosos, a equipe da TV – uma multidão ao
redor do hospício. E de repente, de entre as fumaças negras, surge um
homem franzino carregando um interno para fora do prédio tomado pelas
labaredas. É o Tonho! Desespero da família e dos amigos. Mas Tonho não
atende aos pedidos de ninguém, nem às ordens dos bombeiros: a cada
interno trazido para fora, ele investe destemido prédio adentro para
salvar mais um (mas não antes de dar um aceno e um sorriso para a equipe
de televisão). Logo, todos os internos e funcionários estão a salvo…
exceto Tonho, que ainda permanece dentro do prédio. Os bombeiros tentam
controlar o fogo e salvar o “Salvador”, como já fora batizado nas
chamadas ao vivo na televisão. Mas todo o derradeiro esforço prova-se
vão. Tonho ainda aparece na janela do andar superior, como um deus grego
saído de alguma epopéia, com um sorriso confiante nos lábios, acenando
para a multidão. A última coisa que se vê em Tonho, antes de ser
subvertido pela fumaça negra e pelas labaredas, é a expressão dum homem
realizado.
Com o passar dos anos, a rua do hospício
ganhou o nome de Antônio Cerqueira da Silva. O próprio hospício mudou
seu nome para Centro de Recuperação Antônio Cerqueira. Um busto seu foi
colocado em uma praça, e no aniversário de sua morte, até o dia de hoje,
soltam-se rojões em sua homenagem.
Mas os parentes podiam jurar – muito
embora sempre tenham feito silêncio sobre o caso – que nas fotos em que o
Tonho aparece na janela, no andar superior, enquanto acena para a
multidão, ele ostenta em uma das mãos, como se fosse um troféu, um
modesto e discreto isqueiro.
julianomartinz
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