A garrucha pendurada na parede não é um ornamento, mas um perigo, porque está com os dois canos carregados.
― Seu Osório, por que o senhor mantém essa garrucha pendurada aí na parede, e carregada?
― Ah, é por costume e precisão... Ninguém sabe o que pode acontecer.
Bem,
a garrucha está em lugar um pouco mais alto do que ele, e não ao
alcance das crianças. Estas, porém, imprevisíveis e curiosas como são,
podem pegar uma escada, arrastar um móvel, subir nele e pegar a arma.
― Quantos tiros o senhor já deu com esta garrucha?
― Ah, pra mais de duzentos tiros...
― E acertou todos?
― Uai, quando se atira é para acertar... E quando falha a bala de um cano, tem a outra no outro cano.
Sei
que ele teve muitos entreveros, muitas brigas, mas não me consta que
haja matado ninguém. Ferido, sim, e respondeu a muitos processos. Agora,
quase não sai de casa, fica zanzando pelo quintal e cuidando das
plantas.
― O senhor sabe que é preciso registrar as armas de fogo na
Delegacia de Polícia, ainda que elas só sejam mantidas dentro de casa?
― Bobagem... Que é que a polícia tem a ver com isso? Os ladrões, os bandidos, registram as suas armas de fogo?
Tinha
razão, na minha casa mando eu, e todo cidadão deve ter a sua arma, o
cidadão faz parte de uma milícia que, quando é preciso, derruba o
governo despótico.
Ele, por exemplo, meteu-se em muitas revoluções, se bem que contasse depois que todas elas são traídas.
― A arma é uma mulher, é preciso saber lidar com ela. Com a arma e com a mulher. Bem tratadas, elas nunca negam fogo.
Casado há mais de cinqüenta anos, a sua Lindoca ainda o admira e respeita.
― Lindoca, minha flor, traz um café e um copo dágua fresca para a nossa visita.
Lindoca, ainda vaidosa, com uma flor entre os cabelos.
― Seu Osorinho, meu marido, espere que eu vou ainda moer o café. É só um instantinho.
O moinho, na janela da cozinha. O café torrado ali mesmo, era ele chamado para vir dar o ponto, na peneira. Café forte.
― A garrucha é uma arma antiquada. Temos hoje as pistolas automáticas, e até as metralhadoras.
― Besteirada. O que vale não é a arma, mas o homem com a mão na arma. Esta minha garrucha aí nunca me negou fogo.
Punhal
e garrucha. Armas para serem usadas de perto, quase no corpo a corpo.
Ele conserva a sua garrucha azeitada e polido o punhal dentro da bainha.
― O senhor não tem medo da morte, seu Osório?
―
Tenho não. Quando comparecer diante do Criador, vou armado com a minha
garrucha. E ele me perguntará: “Para que essa garrucha, seu Osorinho? No
céu não se usa arma”. E eu lhe responderei: “Usa sim, senhor meu bom
Deus. Como foi que o senhor e os seus anjos fiéis expulsaram daqui o
Diabo? Foi com raios e trovões. E ele teve de se escafeder”. E o meu
Deus me dirá: “Pois então entre, seu Osorinho, alma cândida e valente”.
A garrucha de seu Osório vai continuar pendurada na parede.
Para o que der e vier.
Anníbal Augusto Gama
Nenhum comentário:
Postar um comentário